Quase duas décadas atrás, em um fim de semana qualquer, estava eu na casa de uma de minhas tias maternas, aquela que pela proximidade física, bem como pelas conexões emocional e (por que não?) intelectual foi a mais presente durante meus primeiros anos.
Eu devia ter entre sete e nove anos, não posso afirmá-lo com exatidão, mas, por ter crescido num núcleo familiar altamente politizado, sabia (ou intuía?) que esta tia era progressista, possuía uma personalidade com tendência revolucionária, um quê de rebeldia, propensão à subversão e lutava com afinco pelo seu ideal de justiça. No meu raciocínio infantil pouco refinado, eu simplesmente a percebia como alguém “de esquerda”, sem qualquer julgamento de valor.
Recordo-me vagamente que assistíamos a um filme e do qual apenas duas cenas, eu viria a sabê-lo depois, ficaram gravadas com toda sua nitidez em um lugar recôndito na minha memória. Ambas retratavam o abuso sexual de uma personagem feminina pelo mesmo homem em dois momentos distintos: em sua infância e tempos mais tarde, já na idade adulta. As duas situações me causaram asco. A primeira delas, pelos sentimentos de impotência e aflição que a vulnerabilidade de uma criança e o contraste físico perante um adulto, principalmente do sexo masculino, podem+ despertar. A segunda, num contexto diferente, colocou-me em contato com a crueldade, a vingança, o ódio e a tortura.
Anos se passaram até que cai em minhas mãos o livro “La casa de los espíritus”, da aclamada escritora chilena Isabel Allende. O fascínio foi imediato pela escrita fluida e pelo estilo similar ao de Gabriel García Márquez, um de meus autores favoritos e grande expoente daquilo que se convencionou chamar “realismo mágico”.
Mentes intuitivas e personalidades sonhadoras são atraídas magneticamente pelo espiritualismo emanante a cada página e facilmente seduzidas pela excentricidade das situações e personagens de um livro de realismo mágico.
‘La casa de los espíritus’ é um romance sobre a passagem do tempo, o contato com o Além, a indignação contra as injustiças e misérias, a revolta contra as mais diversas formas de opressão (machismo, desigualdade social, autoritarismo etc), mas também sobre o ato de escrever como instrumento de busca do autoconhecimento e de enfrentamento dos demônios interiores que cada um de nós carrega consigo.
Existe um filme de 1993, que conta com a atuação de atrizes famosas como Meryl Streep e Winona Ryder, baseado nesta obra. Obviamente, mais de quatrocentas páginas não podem ser contadas em duas horas sem que muito do que é relevante se perca ou pareça desconectado e sem sentido. Inevitavelmente, são necessárias — e geralmente feitas — adaptações ao enredo, por vezes descaracterizando-o. Aqui estamos diante de um destes casos. Foi este o filme que vi há aproximadamente vinte anos em uma abafada tarde de domingo, do qual eu não lembrava sequer o nome, mas que havia marcado vividamente minha lembrança com aquelas fatídicas cenas.
Isabel Allende praticamente transforma a segunda metade do seu livro em um panfleto, abandonando quase por completo o realismo mágico, transformando-o em um “realismo cru”, ao retratar com maestria o ambiente sociopolítico que precedeu o golpe militar no Chile, no início da década de 1970, e ao descrever o horror das torturas e matanças que se seguiram à tomada de poder pelos militares.
Seu livro é uma ode à liberdade, ao amor livre, à resiliência das mulheres e um relato fiel do que pode acontecer quando as camadas mais abastadas de uma nação procuram manter seus privilégios a todo custo. Na busca pela perpetuação do statu quo e pelo antiquado lema “lei e ordem”, ver com bons olhos (ou até estimular) a ascensão das Forças Armadas ao poder, solapando a democracia, significa vender a alma ao diabo, com consequências funestas inclusive para aqueles que apoiam o golpe.
É possível inferir que a história se passa no Chile, ainda que a autora não cite o nome do país uma única vez, pelas peculiaridades históricas, mas seu pano de fundo é comum a qualquer país latino-americano, acostumados a quarteladas, neles incluído o Brasil de 1964. Com profunda tristeza, percebo que, mesmo tanto tempo depois, as sementes do autoritarismo e das soluções fáceis encontram terreno fértil em nosso país. Se não somos capazes de aprender com os erros do passado, que pelo menos a literatura nos liberte!
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