O que falar sobre o livro vencedor do Man Booker Prize 2017?
“Lincoln in the Bardo” não é apenas um must-read para adicionar à sua lista e não desapontar nas rodas de conversa sobre literatura mundo afora. Antes de mais nada, devo confessar algo: todo o hype que tem envolvido este livro desde seu lançamento é plenamente justificável.
George Saunders, já conhecido e reconhecido por seus contos, resolveu incursionar pelo mundo dos romances e o fez de forma magistral. Como se não bastasse escolher um tema de grande apelo pelo personagem histórico envolvido, Saunders subverteu o modelo tradicional de contar uma história e construiu um verdadeiro coro, tornando sua obra o que pode ser chamado de prosa teatral. Mais que isso, colocou em primeiro plano personagens habitualmente invisíveis. Como assim? É exatamente o que você pensou: fantasmas são os narradores e partícipes do que se desenrola numa fatídica noite de inverno de fevereiro de 1862.
Para contextualizar, vale a pena explicar em linhas gerais o que quer dizer bardo. Trata-se de um termo tibetano que designa o período vivenciado por um espírito logo após a morte do corpo e a sua futura reencarnação. Neste caso, não é o próprio Lincoln que o experiencia, mas seu filho, Willie. O enlutado e desolado presidente visita a sepultura onde jaz o corpo de Willie diversas vezes durante a noite buscando aplacar a pungente e insuportável dor que o aflige. No entanto, Lincoln nem ao menos imagina que ali mesmo, ao seu redor, centenas de fantasmas lastimável e comicamente apegados às suas vidas terrenas pregressas brigam, discutem, machucam uns aos outros e negam veementemente a sua inaceitável condição de “mortos”.
A exuberante humanidade destes espíritos desencarnados, mas presos ao seu passado, é o que torna a história profundamente tocante. Todos os seus defeitos e qualidades, memórias, angústias, momentos de alegria e prazer estão expostos de forma crua e, por vezes, exagerada. Os fantasmas sonham em voltar “àquele lugar de antes” para completar suas missões inacabadas, continuar amando, tomar conta de seus bens materiais ou mesmo para se vingar de quem outrora lhes infligiu sofrimento.
No além-túmulo, muitos deles acreditam que seu status social continua a valer, fazendo com que aqueles que experimentaram posições mais altas na hierarquia social se sintam ultrajados quando os sujeitos de classe inferior se recusam a exercer seus antigos papéis; da mesma forma, o instinto os estimula a replicar a mesma carcomida estrutura na sua nova realidade, o mundo dos “doentes” (shhh! a palavra “mortos” não deve jamais ser pronunciada!).
Ao caminhar pelas páginas de “Lincoln in the Bardo”, você se depara com a mais fina ironia e elegante sarcasmo, mas também com momentos de contemplação, reflexão e empatia pelas agruras de outrem. Como não ser compassivo com um pai desesperado ao ver partir um filho em tão tenra idade?
Por fim, os personagens-fantasmas encaram um grande dilema, digamos, existencial (risos): permanecer ad eternum no bardo, vivendo dia após dia uma caricatura do que provaram quando possuíam um corpo de carne e osso ou embarcar rumo ao desconhecido, ao “além-do-bardo”, algo que pode representar o paraíso ou o nada?
“Lincoln in the Bardo” é uma experiência literária (e espiritual) instigante, intensa e imaginativa que nos faz pensar sobre a finitude da vida e o afinco arraigado à matéria.
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