segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Hamilton- An American Musical ou The hottest show in town

“Hamilton — An American Musical” tem sido o musical mais aclamado, premiado e concorrido dos EUA nos últimos dois anos. Conseguir um ingresso para o espetáculo exige paciência e perseverança, já que os tickets se esgotam com meses de antecedência.

Há algum tempo vinha acalentando o desejo de conferir o que esta peça tinha de tão especial para ser capaz de atrair o então presidente Obama e o então vice-presidente eleito Mike Pence, dentre tantas outras personalidades proeminentes da cultura e política norte-americanas. O enredo aborda a vida de Alexander Hamilton, um dos fundadores dos EUA, não menos importante, porém bem menos louvado que George Washington e Thomas Jefferson, por exemplo.

Estive na hora e no lugar certos para conseguir meu ingresso. Um casal de idosos não poderia comparecer ao show que havia reservado desde março e resolveu repassar seus tickets. Ao entrar no Richard Rogers Theatre senti uma sensação de extrema felicidade como quando um sonho se torna realidade, algo que você considerava distante, mas que estava ali ao seu alcance. O sentimento era compartilhado por muitos que estavam ali. A pessoa que estava sentada ao meu lado exclamou pouco antes de começar o show: “I can’t believe I’m here!”

Diferente de outros shows da Broadway, “Hamilton” não costuma atrair muitos estrangeiros. Por se tratar de um episódio específico da história norte-americana e retratar uma figura pouco conhecida no restante do mundo, o público é essencialmente local. E várias pessoas viajam de outros estados para NY a fim de conferir o musical!

“Hamilton” é revolucionário por diversos motivos. Os principais personagens são interpretados por atores latinos e negros, inclusive as figuras históricas como Jefferson, Washington e o próprio Hamilton, todos eles brancos. O musical é inteiramente cantado, sem diálogos falados, sendo o hip-hop o ritmo da maior parte das composições, todas elas originais. Cenário, iluminação e figurino são impecáveis.

Brilhante e arrebatador são adjetivos que não retratam com exatidão o que pode ser dito de “Hamilton”.
Saí do teatro exultante e grato por ter vivido uma experiência marcante e inesquecível.

PS: Após o show, descobri que o ator que interpreta Hamilton, Javier Muñoz, já venceu um câncer e é HIV-positivo. É incrível ver seu vigor para cantar, dançar e interpretar por quase três horas. Mais uma história inspiradora de superação.

Ser criança

Hoje fui acompanhar minha irmã caçula numa gincana cultural em sua escola. Havia dezenas de crianças do ensino fundamental I, que devem ter entre 7 e 10 anos de idade.

Num momento em que o ódio que perpassa as relações entre os adultos nos deprime, foi revigorante ter novamente contato com a doçura infantil. Percebi um forte sentimento de cooperação entre os alunos da mesma sala, com o objetivo comum de alcançar a vitória, e, apesar da competição entre as diversas turmas, ao final, todos (vencedores e perdedores) confraternizaram. Era nítida a alegria em seus olhares por poderem compartilhar juntos um momento de êxtase e felicidade como aquele.

Depois desse momento, tive a certeza de que temos muito a aprender com estes pequenos. É preciso evitar dar exemplos de rancor, ódio, intolerância e preconceito. Agir assim não é apenas a coisa certa a se fazer, mas nosso dever em relação a eles.

Fiquei pensando como será o mundo que deixaremos para estas novas gerações. Seria extremamente injusto legar a elas um meio ambiente inóspito e uma sociedade em que as relações humanas não são nada menos que envenenadas. Espero que a rota trilhada por nós de uns tempos pra cá seja alterada a tempo e estas crianças possam viver num mundo melhor do que aquele em que viveram seus pais e avós.

O realismo mágico de Gabriel García Márquez e a literatura de cordel

A prosa de Gabriel García Márquez me remete à poesia da literatura de cordel que tive a felicidade de conhecer vasculhando os armários do antigo sítio de vovó nos meus dias de criança.

O sobrenatural, a onipresença da religião, as crendices, as assombrações e os mitos que permeiam o imaginário popular e ajudam a construir o realismo mágico do escritor colombiano guardam muitas semelhanças com os temas cantados pelos sertanejos nordestinos em suas rimas.

Talvez por isso o sertanejo aqui tenha lido quase sem pausa para tomar fôlego a história de uma marquesinha chamada Sierva María (também conhecida como Maria Mandinga (risos), mitômana por convicção e prazer, nascida de sete meses e dona de uma cabeleira de mais de dez palmos que só deveria ser cortada após seu casamento. Sierva María é mordida por um cão raivoso, mas no ambiente onde vicejam a ignorância e a repressão promovidas pela fé católica, é tida como possuída por demônios que precisam ser exorcizados. Sierva, branca, odiada pelos pais e deixada aos cuidados dos escravos, cresceu nas senzalas, falava iorubá e congo, usava colares de macumba e dançava como negra.

Maria Mandinga foi submetida a suplícios insuportáveis para qualquer menina de doze anos, porém os enfrentou com firmeza e resiliência, sucumbindo apenas ao amor que lhe era proibido.

O enredo, a narrativa e a fluidez da escrita me puseram em contato com minhas reminiscências, deslumbrado e com a certeza de que Sierva María existiu; contudo, mais que isso, Maria Mandinga será imortal enquanto houver em algum lugar desta América Latina alguém que se deixe enfeitiçar pela magia de Gabriel García Márquez e por literatura de cordel.

Realismo mágico e reminiscências de uma infância

Quase duas décadas atrás, em um fim de semana qualquer, estava eu na casa de uma de minhas tias maternas, aquela que pela proximidade física, bem como pelas conexões emocional e (por que não?) intelectual foi a mais presente durante meus primeiros anos.

Eu devia ter entre sete e nove anos, não posso afirmá-lo com exatidão, mas, por ter crescido num núcleo familiar altamente politizado, sabia (ou intuía?) que esta tia era progressista, possuía uma personalidade com tendência revolucionária, um quê de rebeldia, propensão à subversão e lutava com afinco pelo seu ideal de justiça. No meu raciocínio infantil pouco refinado, eu simplesmente a percebia como alguém “de esquerda”, sem qualquer julgamento de valor.

Recordo-me vagamente que assistíamos a um filme e do qual apenas duas cenas, eu viria a sabê-lo depois, ficaram gravadas com toda sua nitidez em um lugar recôndito na minha memória. Ambas retratavam o abuso sexual de uma personagem feminina pelo mesmo homem em dois momentos distintos: em sua infância e tempos mais tarde, já na idade adulta. As duas situações me causaram asco. A primeira delas, pelos sentimentos de impotência e aflição que a vulnerabilidade de uma criança e o contraste físico perante um adulto, principalmente do sexo masculino, podem+ despertar. A segunda, num contexto diferente, colocou-me em contato com a crueldade, a vingança, o ódio e a tortura.

Anos se passaram até que cai em minhas mãos o livro “La casa de los espíritus”, da aclamada escritora chilena Isabel Allende. O fascínio foi imediato pela escrita fluida e pelo estilo similar ao de Gabriel García Márquez, um de meus autores favoritos e grande expoente daquilo que se convencionou chamar “realismo mágico”.

Mentes intuitivas e personalidades sonhadoras são atraídas magneticamente pelo espiritualismo emanante a cada página e facilmente seduzidas pela excentricidade das situações e personagens de um livro de realismo mágico.

‘La casa de los espíritus’ é um romance sobre a passagem do tempo, o contato com o Além, a indignação contra as injustiças e misérias, a revolta contra as mais diversas formas de opressão (machismo, desigualdade social, autoritarismo etc), mas também sobre o ato de escrever como instrumento de busca do autoconhecimento e de enfrentamento dos demônios interiores que cada um de nós carrega consigo.

Existe um filme de 1993, que conta com a atuação de atrizes famosas como Meryl Streep e Winona Ryder, baseado nesta obra. Obviamente, mais de quatrocentas páginas não podem ser contadas em duas horas sem que muito do que é relevante se perca ou pareça desconectado e sem sentido. Inevitavelmente, são necessárias — e geralmente feitas — adaptações ao enredo, por vezes descaracterizando-o. Aqui estamos diante de um destes casos. Foi este o filme que vi há aproximadamente vinte anos em uma abafada tarde de domingo, do qual eu não lembrava sequer o nome, mas que havia marcado vividamente minha lembrança com aquelas fatídicas cenas.

Isabel Allende praticamente transforma a segunda metade do seu livro em um panfleto, abandonando quase por completo o realismo mágico, transformando-o em um “realismo cru”, ao retratar com maestria o ambiente sociopolítico que precedeu o golpe militar no Chile, no início da década de 1970, e ao descrever o horror das torturas e matanças que se seguiram à tomada de poder pelos militares.

Seu livro é uma ode à liberdade, ao amor livre, à resiliência das mulheres e um relato fiel do que pode acontecer quando as camadas mais abastadas de uma nação procuram manter seus privilégios a todo custo. Na busca pela perpetuação do statu quo e pelo antiquado lema “lei e ordem”, ver com bons olhos (ou até estimular) a ascensão das Forças Armadas ao poder, solapando a democracia, significa vender a alma ao diabo, com consequências funestas inclusive para aqueles que apoiam o golpe.

É possível inferir que a história se passa no Chile, ainda que a autora não cite o nome do país uma única vez, pelas peculiaridades históricas, mas seu pano de fundo é comum a qualquer país latino-americano, acostumados a quarteladas, neles incluído o Brasil de 1964. Com profunda tristeza, percebo que, mesmo tanto tempo depois, as sementes do autoritarismo e das soluções fáceis encontram terreno fértil em nosso país. Se não somos capazes de aprender com os erros do passado, que pelo menos a literatura nos liberte!

Lincoln in the bardo

O que falar sobre o livro vencedor do Man Booker Prize 2017?

“Lincoln in the Bardo” não é apenas um must-read para adicionar à sua lista e não desapontar nas rodas de conversa sobre literatura mundo afora. Antes de mais nada, devo confessar algo: todo o hype que tem envolvido este livro desde seu lançamento é plenamente justificável.

George Saunders, já conhecido e reconhecido por seus contos, resolveu incursionar pelo mundo dos romances e o fez de forma magistral. Como se não bastasse escolher um tema de grande apelo pelo personagem histórico envolvido, Saunders subverteu o modelo tradicional de contar uma história e construiu um verdadeiro coro, tornando sua obra o que pode ser chamado de prosa teatral. Mais que isso, colocou em primeiro plano personagens habitualmente invisíveis. Como assim? É exatamente o que você pensou: fantasmas são os narradores e partícipes do que se desenrola numa fatídica noite de inverno de fevereiro de 1862.

Para contextualizar, vale a pena explicar em linhas gerais o que quer dizer bardo. Trata-se de um termo tibetano que designa o período vivenciado por um espírito logo após a morte do corpo e a sua futura reencarnação. Neste caso, não é o próprio Lincoln que o experiencia, mas seu filho, Willie. O enlutado e desolado presidente visita a sepultura onde jaz o corpo de Willie diversas vezes durante a noite buscando aplacar a pungente e insuportável dor que o aflige. No entanto, Lincoln nem ao menos imagina que ali mesmo, ao seu redor, centenas de fantasmas lastimável e comicamente apegados às suas vidas terrenas pregressas brigam, discutem, machucam uns aos outros e negam veementemente a sua inaceitável condição de “mortos”.

A exuberante humanidade destes espíritos desencarnados, mas presos ao seu passado, é o que torna a história profundamente tocante. Todos os seus defeitos e qualidades, memórias, angústias, momentos de alegria e prazer estão expostos de forma crua e, por vezes, exagerada. Os fantasmas sonham em voltar “àquele lugar de antes” para completar suas missões inacabadas, continuar amando, tomar conta de seus bens materiais ou mesmo para se vingar de quem outrora lhes infligiu sofrimento.

No além-túmulo, muitos deles acreditam que seu status social continua a valer, fazendo com que aqueles que experimentaram posições mais altas na hierarquia social se sintam ultrajados quando os sujeitos de classe inferior se recusam a exercer seus antigos papéis; da mesma forma, o instinto os estimula a replicar a mesma carcomida estrutura na sua nova realidade, o mundo dos “doentes” (shhh! a palavra “mortos” não deve jamais ser pronunciada!).

Ao caminhar pelas páginas de “Lincoln in the Bardo”, você se depara com a mais fina ironia e elegante sarcasmo, mas também com momentos de contemplação, reflexão e empatia pelas agruras de outrem. Como não ser compassivo com um pai desesperado ao ver partir um filho em tão tenra idade?

Por fim, os personagens-fantasmas encaram um grande dilema, digamos, existencial (risos): permanecer ad eternum no bardo, vivendo dia após dia uma caricatura do que provaram quando possuíam um corpo de carne e osso ou embarcar rumo ao desconhecido, ao “além-do-bardo”, algo que pode representar o paraíso ou o nada?

“Lincoln in the Bardo” é uma experiência literária (e espiritual) instigante, intensa e imaginativa que nos faz pensar sobre a finitude da vida e o afinco arraigado à matéria.

Entre o niilismo e a chacota



O poço da desmoralização da política - e, por tabela, da democracia – brasileira parece não ter fundo. Depois de quase quatro anos de uma revelação aterradora após a outra sobre o que nossos representantes eleitos fazem a portas fechadas, Fernando Collor, um ex-presidente extremamente impopular e que teve seu mandato interrompido dois anos antes do fim, anuncia que mais uma vez concorrerá à presidência da República.

Quando o escárnio parecia ter atingido seu limite com a constatação de que dos dois candidatos líderes nas pesquisas, um deles está às voltas com o judiciário, prestes a ser condenado em segunda instância e ser impedido de concorrer, e o outro é talvez a figura mais abjeta, ignorante, imbecil, agressiva e perigosa que esteve sob os holofotes nos últimos tempos.

Palavras e expressões como terra arrasada, caos e fim da linha podem soar pessimistas, e até mesmo exageradas, mas são os termos que merecem ser utilizados para descrever o atual cenário. Fica quase impossível não ceder ao niilismo.

A política é elemento imprescindível e constitutivo da vida em sociedade, enquanto a democracia, embora imperfeita, ainda é a melhor forma de governo que já existiu. A descrença e a desconfiança dos brasileiros em relação aos nossos políticos e seus partidos se tornaram o tópico onipresente em qualquer conversa na fila do banco ou no transporte a caminho do trabalho. Ainda que seja salutar a aparente politização do povo brasileiro, o sentimento de ojeriza vai minando e enfraquecendo uma democracia ainda imatura. Há o alarmante perigo de se estender a repulsa pelos homens (políticos) à atividade (política), o que seria desastroso.

Neste contexto de percepção da política como seara da sujeira e da corrupção, como atividade imoral e indigna, a pré-candidatura de Fernando Collor vem corroborar a ideia de que a política brasileira se assemelha a um esquete histriônico de péssima qualidade. E de que forma a sociedade reage? Com memes, esse artigo da era digital que os brasileiros brilhante e compreensivelmente se especializaram em produzir, afinal a sagacidade de nosso povo encontrou na nossa política um material abundante.

É fundamental então buscarmos dissociar políticos e política, sob o risco de transformarmos a desesperança que sentimos em terreno fértil para o crescimento do(s) autoritarismo(s). Precisamos resgatar a seriedade inerente à política e relegar os fantasmas e cadáveres insepultos que insistem em nos assombrar ao seu verdadeiro lugar: o limbo.