terça-feira, 21 de maio de 2019

O dia em que ouvi a voz de Deus e quase fui levado

De tempos em tempos, minha mente faz emergir, por sei lá que razão, acontecimentos de minha infância que eu já julgava completamente esquecidos. Obviamente, o fato de essas reminiscências ressurgirem apenas como vislumbres torna o relato a seguir com pouca acurácia em relação a datas; no entanto, quando recordo aqueles momentos, as sensações que percorrem meu corpo são as mesmas de então.

Lá se vão mais de vinte anos – eu devia ter cinco ou seis anos na época – mas o local e o contexto ainda estão bem vívidos na memória. Eu morava com a minha avó materna, uma sertaneja para quem a religião sempre teve um papel central. Contudo, seu fervor religioso nem de longe a tornava uma senhora carrancuda ou carola. Seu catolicismo era (e ainda é) daquele tipo bem peculiar das pessoas do interior do Nordeste: há muito mais fé do que dogma e muito mais compaixão do que conservadorismo tacanho. Sendo assim, na Juazeiro do Norte dos anos 1990, as idas à igreja constituíam o principal evento social e – por que não? – de entretenimento.

Em uma destas visitas ao Santuário de São Francisco, um dos maiores da cidade e que dá nome ao bairro em que vivíamos (Franciscanos), minha bisavó, com seus oitenta e poucos anos bem vividos, nos acompanhava. Quando ela vinha do sítio trazendo alguma de minhas primas tudo virava festa! Além das matriarcas e da minha prima, um dos irmãos da minha mãe, seis anos mais velho que eu, também estava conosco.

Foi neste dia que tive meu primeiro contato com o aspecto supersticioso do catolicismo nordestino. Em Juazeiro, nos arredores das igrejas, é possível encontrar facilmente gente vendendo todo tipo de artigo religioso. São miniaturas de estátuas do Padre Cícero, em gesso ou madeira, quadros com imagens de santos e do Sagrado Coração de Jesus, e as famosas fitinhas multicoloridas com a inscrição “Estive em Juazeiro do norte e lembrei de você” semelhantes àquelas do Senhor do Bonfim que anos depois conheci na Bahia.

Reza a lenda que se você amarrar uma dessas fitas no punho, fizer três pedidos e não a tirar até que se parta sozinha, seus desejos serão realizados.

Naquela manhã, minha avó comprou algumas para nós e me confessou adicionando mais uma superstição à lenda: se você fizer os três pedidos dentro da igreja, eles terão muito mais força.

Minha avó era a principal referência da minha meninice. Tudo o que ela falava era como lei e eu acreditava piamente. Segui seu conselho: adentrei a igreja e me dirigi à estátua de um dos santos do lado esquerdo do santuário. Não me recordo bem se era São Francisco, Jesus ou a Virgem Maria; minha memória falha neste ponto e vocês hão de me perdoar. Ajoelhei-me. O que acontece agora entra na alçada do fantástico, do mágico. Comecei a fazer meus pedidos, de olhos fechados, EM PENSAMENTO, mas, para minha surpresa, imediatamente uma voz grave começou a soar no teto da Igreja recitando EXATAMENTE as mesmas palavras que passavam pela minha mente. Naquele instante, pensei: só pode ser o próprio Deus ouvindo minhas preces. Um sentimento de felicidade me invadiu, pois tive a certeza de que meus pedidos seriam atendidos.

Hoje, já crescido, a fantasia há muito me abandonou. Acredito que eu possa, por conta do fervor da minha fé, ter tido uma alucinação. Mais plausível é que tenha ouvido a voz do sacristão nos alto-falantes anunciando algo sem importância. Claro que não comentei o ocorrido com ninguém, porque era um segredo entre Deus e eu! É proibido contar seus pedidos a outra pessoa sob pena de que a divindade os recuse sumariamente pela sua indiscrição.

Levantei-me e segui em direção à saída principal do santuário. Eu já tinha percebido que uma mulher de meia-idade, com um pano amarrado na cabeça e um tanto estridente, vinha me observando lá dentro da igreja. Ela se aproxima, toma minha mão e começa a gritar que sou seu filho e que estão querendo tirar-me dela.
Extremamente assustado, com algum esforço consegui me desvencilhar e ouvi minha avó dizer para mim, meu tio e minha prima: “Corram!”. Desesperado e com o coração palpitando mais rápido e forte do que nunca, corri o mais rápido que podia. De vez em quando olhava para trás aterrorizado pela mulher. Via aquele pano colorido em sua cabeça ficando cada vez mais distante enquanto eu me aproximava da casa de minha mãe.
Quando chegamos, ainda ofegante, o alívio tomou conta de mim. No entanto, a apreensão persistia. Eu não queria ser levado por aquela mulher e nunca mais ver minha família! Poucos instantes depois, vovó e ‘bisa’ chegam e dizem que com muito custo conseguiram despistá-la. Por ora, eu estava salvo!
As semanas se passaram e a fitinha foi ficando gasta no meu pulso até que um dia se partiu. Sim, meus desejos se realizaram, mas, por um acordo com Deus, não posso contá-los. Dá azar!

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